"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas...Continuarei a escrever" - Clarisse Lispector

domingo, 30 de outubro de 2011

A rachadura




A rachadura


Clara percebeu que havia uma pequena rachadura na pele lateral de seu pé. Tocando-a coma ponta do indicador, averiguou que o local estava levemente ressecado e a pele áspera ― precisava passar um creme, pensou friccionando a ferida com o dedo.

No entanto, quando voltou para casa, não usou creme nenhum, esquecendo-se do pé. Vários dias se passaram sem mais ela se lembrar do machucado, porém, inconscientemente, levava o dedo ao local de vez em quando, enquanto fitava desinteressada seus professores na sala de aula, ou ouvia silenciosamente seus pais conversarem nas refeições.

Numa certa tarde excepcionalmente chata, envolvida em um tédio tão grande que ela ignorava completamente o que o professor de física dizia, sentiu uma dor ardida vindo do pé. Procurando sua fonte, percebeu quase indiferente que havia arranhado a região ressecada e arrancado parte da pele. O local estava avermelhado, mas não chegava a sangrar. Dando de ombros, puxou sua meia mais para cima a fim de escondê-lo, e voltou à seu árduo trabalho de ignorar o professor.

Sua descontração na sala de aula, entretanto, não afetava seu desempenho. A verdade era que aquele conteúdo era fácil demais, e lendo seus cadernos de teoria conseguia rapidamente solucionar as questões. Era inteligente, sim, e o pai anunciava orgulhoso para todos que quisessem e não quisessem ouvir: seria medica, assim como o avô.

Na noite seguinte foi assistir à apresentação de dança da prima dois anos mais velha. Ela dançava balé contemporâneo, e naquele festival seria uma das dançarinas principais, estrelando pela primeira vez depois de anos de aulas e treinos. Os tios de Clara aplaudiram extasiados quando ela subiu ao palco, mas seus pais estavam discretamente aborrecidos com o evento social. Ela bem sabia, não gostavam da sobrinha, era magra demais, rosto fino demais, pele morena demais, gostos subversivos demais, irresponsável demais. Clara não, tinha o rosto delicado, um sorriso sereno, e puxara os olhos da mãe, o que o pai não cansava de dizer.

A prima entrou no palco com um vestido branco rasgado, o cabelo cheio de cachos puxado num rabo de cavalo alto, caindo por suas costas, e ornamentado com uma fita de cetim. Esquecendo dos comentários dos pais, para Clara, ela parecia a criatura mais fantástica do mundo. Em meio aos aplausos frenéticos e impressionados, ela pôs-se a arrancar lenta e minuciosamente a casquinha da ferida que estava já parcialmente cicatrizada, sem desgrudar os olhos da prima.

Os dançarinos encheram o palco rodopiando, arrastando-se, dançando rentes ao chão com movimentos esquisitos, sensuais, ferozes e libertadores, sob uma música de sons distorcidos da cidade. No final do show todas as bailarinas e bailarinos subiram ao palco agradecer. Montes deles, com roupas deslumbrantes, sorrisos no rosto, se curvavam educadamente diante das palmas. Clara olhava para o palco, depois para os pais, depois novamente para o palco, e não pôde deixar de pensar: “serei uma ótima médica um dia”. Mas não sorria.

Terminada a apresentação, e de volta a sua casa, sem fome, dirigiu-se a seu espaçoso quarto e fechou a porta. O lugar, iluminado apenas por um abajur, exibia móveis de madeira escura. A luz clareava somente o armário com a porta aberta, deixando à mostra roupas cor de rosa, salmão e bege, que a mãe da jovem aos montes comprava e enfiava no móvel, já bem apertado. Na escrivaninha havia diversos livros e uma caixinha de jóias de madeira entalhada e trancada, a chave guardada cuidadosamente longe da vista de todos.

O quarto transmitia uma sensação de vazio para Clara. Ela virou-se na cama, deitando de bruços, sentindo seu pé arder loucamente com o contato em sua meia. Irritou-se com a ferida, mas logo a irritação passou e ela começou a ignorá-la, permanecendo por várias horas fitando seu travesseiro.

Depois daquele dia, não mais deixou que a ferida cicatrizasse. Suas provas se aproximavam, ela mantinha-se entediada com a certeza de que passaria, arranhando o pé. Chegou num dado momento que não havia mais pele para arrancar naquela região, e desinteressada começou a cutucar seu cotovelo. Não levou muito tempo para obter marcas feias, e passou a usar apenas camisetas de manga longa para ocultá-las. Para sua sorte, onde vivia o clima não era tão quente, então não seria incomodada pelo calor e suor.

As provas passaram como se fossem apenas mais um evento rotineiro, sem nada a declarar ou acrescentar, o tédio costumeiro, e enfim chegaram os resultados já esperados que ela obtivera sucesso. A família cheia de orgulho chamou os parentes para uma festa de comemoração em casa, com farta comida, farta fofoca e pouco conteúdo.

A prima chegou com suas roupas despojadas, cabelo solto, alegre, e parabenizou-a com o sorriso mais sincero possível. Clara agradeceu, aquietou-se, voltou ao tédio cheio de angústia e esperou pacientemente que todas aquelas pessoas fossem embora, para enfim jogar-se debaixo da água quente do chuveiro. Deixou-a escorrer por todo o corpo, fervendo, lambendo as feridas que ardiam insuportavelmente, sufocando um lamento. Olhou para seu trabalho bem feito, não havia sequer um lugar mais para enfiar suas garras na região. Apática, examinou o resto de seu corpo, esboçando um sorriso, e pensou:

“Bem, para onde vou agora?”

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Andorinhas




Andorinhas


Andorinhas gostam de voar em dias nublados. Pela manhã, próximas ao rio, formam uma cortina de pingentes negros no céu que me distrai um pouco de minha solidão. Há beleza em um amanhecer de nuvens baixas e carregadas...

O mundo que eu gostaria de entrar...



O mundo que eu gostaria de entrar...



Você cada vez mais afunda

Num fosso escuro entorpecido,

Escutando músicas aflitas,

Escutando guitarras distorcidas.

Em seu mundo, sua companhia,

Em seus delírios, seus sofrimentos,

Sua realidade irreal,

Afunda, mergulha, afunda...



Eu bati em sua porta,

Mas não fui atendida.

Então forcei-a,

Mas encontrei feroz resistência.

O que você esconde ai,

No meio de seu universo,

No meio de melodias tristes?



Há uma ferida em seus lábios.

Há uma ferida em meus olhos.

Mas nossas visões não se cruzam para perceber

Que seus braços estão fazendo falta por aqui.

Quem é o homem que está escondido?

Só vejo uma imagem nebulosa de seu contorno...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Som da paz




Som da paz


Às vezes penso comigo mesma, se a paz tivesse um som, seria o som da chuva. Não o som daquelas tempestades vorazes que arrebentam terras e rasgam céus, mas sim o daquela garoa contínua que perdura pelo dia todo, lava a poeira e limpa o ar, e na manhã seguinte deixa a grama naquele tom verde vivo. Aquela garoa que cai no entardecer e refresca o ambiente, que deixa aquele cheirinho gostoso de chuva pairando nas ruas. Aquele som que acalma meu espírito...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Humanidade




Humanidade


Nunca hei de entendê-lo.

Esse seu apego a razão,

Esse seu negar de sentimento!

O que é o que você sente,

Senão você mesmo?

Completamente racional é uma máquina.

Mas você é um homem,

Ouso dizer, cativante.

Por que renegar o que lhe pertence?

Irracional não é o sentir exacerbado,

Mas sim a tentativa de espírito domado,

A tentativa de apagar sua humanidade.