"Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas...Continuarei a escrever" - Clarisse Lispector

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Procurando por sonhos




O cobertor foi desdobrado, jogado de um lado para o outro pelas pernas inquietas, e terminou amontoado ao pé da cama. O desespero afundou o rosto no travesseiro, procurando ser acalentado, e também por um pouco de ternura. Mas o travesseiro não era mais o mesmo, ou talvez ela não fosse. Os sonhos que antes ficavam guardados embaixo de sua fronha haviam sumido - talvez roubados, talvez perdidos, ou mais provável, esquecidos em algum canto empoeirado. As horas passavam com o olhar fixado no teto. Nada mais das imagens, sons, cheiros e cores, das alegrias, aventuras e magia, nem mais as lágrimas incontroláveis. Apenas o teto escuro, o corpo triste e o travesseiro oco...

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

As ruínas




As ruínas



Abriu os olhos.

Tudo à sua volta era escuro, iluminado apenas por uma luz avermelhada do lampião que ela tinha em mãos.

Observava a paisagem, intrigada. Estava numa mansão em ruínas, era o que parecia. À sua frente havia uma escadaria, forrada com um tapete vermelho. Ao chegar mais perto, percebeu que este estava úmido e repleto de musgo, furado por traças e desgastado pelos caprichos do tempo.

Encostou-se no corrimão, mapeando todo o lugar com os olhos. Onde estava? Por que estava ali? Como chegara lá? Quem era ela? Estas perguntas sem resposta aparente desabrochavam na cabeça da menina.

Estava escuro demais... Deveria ser noite. Nem noção do tempo ela tinha direito. Tentou apelar para seus sentidos. A visão não lhe ajudaria muito, já que tudo estava envolvido numa penumbra inconstante, que tremeluzia com a frágil luz do fogo.

Fechou os olhos para sentir os cheiros. Madeira velha, mofo e umidade, muita umidade. Se concentrando, pôde ouvir o som do vento que passava pelas paredes velhas e danificadas, cheias de fendas. Também havia o som de água corrente, pingando devagar, constante.

Abriu os olhos novamente. Não adiantaria nada ficar lá parada, esperando algo acontecer, alguma resposta surgir. Decidiu explorar a casa. Primeiramente subiu a escada, seus passos abafados pelo tapete velho. Uma fina linha de luz começou a despontar numa das janelas ― estava amanhecendo. Satisfeita com a luz e o carinho do calor do Sol em seu rosto, ela apagou o fogo num sopro só. Não precisaria mais daquela iluminação macabra.

Já no andar de cima, ela caminhou calmamente pelos longos corredores da mansão. Havia portas e mais portas, quartos e mais quartos, e quadros enfeitando as paredes antigas. Muitos deles com imagens desgastadas e feridas, talvez pelo abandono da casa, ou talvez por terem sido apreciados por tempo demais pelos antigos moradores.

Ela parava em alguns desses quadros, principalmente nos retratos. Eles lhe davam uma sensação estranha, que ela não conseguia decifrar. A menina não sabia, mas o que sentia era uma espécie de dejavu; como se já tivesse visto tudo aquilo antes, mas muito, muito tempo atrás.

Incomodada com isso, voltou a andar, agora inquieta. Não queria mais olhar os quadros, eles a estavam apavorando. Abriu a primeira porta que viu, e ficou estacionada olhando para o quarto.

As suas quatro faces eram cobertas por um papel de parece cor de rosa, com laços espalhados, dando um ar gracioso ao ambiente apesar dos desenhos já estarem gastos. Num dos cantos havia uma estante embolorada, que provavelmente já fora branca, com uma boneca de pano repousando sobre ela. Ao lado, um espelho em forma de coração pregado na parede.

No outro canto, uma cama desarrumada, os lençóis todos sujos, pois parte do telhado se quebrara e agora deixava entrar a chuva, que ia aos poucos desbotando os detalhes daquele quarto de menina.

Inopinadamente, sentiu dificuldades para respirar. Algo naquele lugar a apavorava, dava calafrios. Sentiu tontura e dor de cabeça, mas isso não era o pior. Um desespero profundo foi tomando conta dela, preenchendo-a, torturando-a. Apoderava-se da menina como uma sombra traiçoeira, e aos poucos começava a se enrolar em seu pescoço, tentando estrangulá-la.

Alucinada para fugir daquela sensação angustiante, deu um passo para trás. E foi apenas pisar fora do quarto, para que tudo desaparecesse. A dor, o medo, o sufoco, tudo sumiu repentinamente, como se não tivesse passado de um sonho, ou de uma brincadeira de alguma fada travessa.

Ela devorou uma golfada de ar, sentindo o alivio voltar aos pulmões. Respirou fundo, tentando controlar a tremedeira. Tinha que se afastar daquele quarto, o mais rápido possível.

Caminhou com pressa na direção contraria dele, percorrendo todo o longo corredor, até chegar numa porta no final dele. Estava velha, como tudo naquele lugar. Provavelmente fora muito bonita anos atrás, a menina pôde constatar, graças aos detalhes esculpidos ao longo dela. Porém, agora estava arranhada e apodrecida.

A jovem abriu a porta, curiosa para saber o que havia lá dentro, e também ansiosa para se afastar mais do quarto pavoroso.

Era uma biblioteca. Lá estava mais claro, pois havia enormes janelas fornecendo luz para leitura. Todas elas estavam destruídas, os vidros estilhaçados; e agora árvores retorcidas adentravam no aposento, escalavam as estantes, enraizavam-se no piso antigo e em todas as brechas que encontravam, e já floresciam, tímidas, dando uma beleza rara ao lugar.

Havia poças por todo lado. Por que tanta água naquele lugar? – essa era uma pergunta mais fácil de ser respondida. O telhado já não era mais o mesmo, estava esburacado e acabado.

A garota não sabia dizer se estava frio ou quente. Levou o dedo até a boca, e sentiu os lábios trincados, mas também não sentia dor. Começou a se incomodar com aquilo.

Decidiu explorar a biblioteca. Agora já havia amanhecido, e os raios entravam alegres pelas amplas janelas, enchendo todo o lugar com luz. Os grãos de poeira podiam ser vistos dançando no ar, quando eram atravessados pelos raios, e pareciam comemorar a chegada de mais uma manhã.

Passou por entre as poças sem espalhar água ou ver seu reflexo, e parou em frente a uma estante. Havia livros e mais livros, todos danificados e provavelmente ilegíveis. Ela não tirou nenhum do lugar, esforçou-se em observar as raízes que furavam as prateleiras de madeira.

As árvores realmente cresceram por todo canto aqui, pensou a menina. Galhos e folhas começavam a formar portais sobre os corredores de mais e mais obras literárias. Os troncos e raízes não pouparam um buraco sequer, enroscavam-se preguiçosos nas estantes, roubavam o lugar dos livros, e apoiavam-se nas paredes, procurando uma fácil sustentação para crescerem e jogarem seus galhos curiosos sobre todo o ambiente.

E suas flores! Era a primeira coisa bela que a jovem via naquelas ruínas. Azuis, todas charmosas, com canudinhos de ponta amarela saindo do meio das pétalas aveludadas. Pareciam brilhar com a luz matinal, pareciam sorrir para a menina.

Ela percorreu os corredores, lendo aqui e acolá o título de algum livro, todos muito antigos. Passou por romances, odisséias, tragédias, aventuras, estudos, teses, ensaios teatrais e muitos outros. Por algum motivo também incerto, a biblioteca lhe dava uma sensação agradável.

No entanto, ela chegou ao ultimo corredor, no último livro. Nada mais havia para explorar. Somente uma porta no extremo daquela biblioteca, tão desgastada quanto todo o resto ali.

A menina abriu-a, curiosa para o que estava por vir, mas também temerosa. Muita luz e calor inundaram o ambiente, a porta escancarada dava para o lado de fora da mansão, mais especificamente para uma escada em caracol que terminavam num jardim.

Ela desceu devagar, observando os detalhes da escada em espiral, toda de mármore branco; jazia impecável, sem um risco sequer, porém também já sendo coberta por trepadeiras como os armários da biblioteca. Devia ter sido linda há tempos atrás, como todo o resto daquela mansão. Em todos os cantos a menina encontrava mais e mais traços de luxo.

O jardim era composto de colunas formando um círculo, e no centro provavelmente flores bem cuidadas. No entanto a jovem não podia distinguir o que outrora fora plantado ali, pois o mato já havia tomado conta de tudo.

Caminhou pelo jardim com uma sensação nostálgica. De repente, parecia ouvir um riso de criança rodeando-a, ver o sorriso de pais orgulhosos, sentir a alegria que há muitos anos atrás preencheu aquele jardim. Em alguns canteiros destruídos, para seu assombro, teve a ligeira sensação que sabia que flores havia ali antigamente. Rosas, margaridas, cravos, dentes de leão...

Recuou dos canteiros, para sentir novamente um calafrio percorrer sua espinha, para a alegria do jardim desaparecer. Girando o pescoço, viu. Atrás dela havia outra entrada para a casa, uma porta entreaberta, que parecia gritar seu nome, gritar para ela entrar. Seu nome? Nem isso sequer ela sabia, mas a porta sussurrava algo, algo que parecia ser seu nome. A porta tragava-a com uma aparente gravidade própria, devorava o espírito da menina.

Ela adentrou. Aquele corredor parecia mais preservado do que os outros, não havia água ali. A jovem correu, tomada de um ímpeto aflito, passando veloz pelo piso antigo sem levantar a poeira que se acumulava. Precisava chegar à outra porta entreaberta no fim do corredor, não sabia exatamente por quê. Sua cabeça doía, seus olhos se apertavam nas órbitas, a nostalgia dessa vez acompanhada por medo retornava.

Pisou no lugar, prendendo a respiração.

Era uma sala, com duas grandes poltronas para leitura, e uma mesinha entre elas. Havia um livro caído e aberto no chão.

A cabeça da jovem pareceu explodir de dor. Estarrecida, percebeu que não sentia mais seus pés, nem suas mãos, nem braços e pernas, nem nada, apenas a dor lacerante que cortava sua têmpora e embaçava seus olhos. Ouviu novamente o riso de uma criança, pôde vê-la correndo pelo lugar, rindo, enquanto os pais liam uma história sentados nas poltronas. As imagens pareciam sombras desfocadas.

A sala em seu auge e a sala destruída se sobrepunham e se misturaram. Na madeira velha, nas poltronas encardidas, haviam manchas escuras e oxidadas, respingos por todos os lados, maculando o que antes fora um lugar agradável. As manchas envelhecidas tomaram cores, voltando ao passado, de vermelho feroz e vivo.

Ela viu um homem adentrando na sala. Uma mulher gritando. Um homem correndo para tentar defendê-la, e uma criança se agachando horrorizada num dos cantos da sala. O sangue escorreu; primeiro do pai, que num movimento brusco de resistência derrubou um livro no chão; segundo da mãe, que ainda gritava, e cambaleou sobre a poltrona, manchando-a. Então o homem se dirigiu a criança, de olhos verdes arregalados, com uma lâmina faiscando... Uma última mácula de sangue fez-se, silenciando o lugar.

A jovem estava novamente na sala destruída, com manchas escuras do passado. Abriu os olhos verdes; era uma sombra, como todas as outras daquele lugar. A dor aos poucos diminuía, aos poucos falecia, e sua imagem esfarelava-se diante das lembranças. Recobrando-se de tudo, sentiu que precisava desaparecer. Agachou-se no mesmo canto que antes estivera a criança, sorriu.

Uma sombra, não mais que uma sombra, habitava naquelas ruínas.

domingo, 27 de novembro de 2011

No fundo do castanho escuro...



Gosto de olhar seu perfil sério e pensativo, e poderia passar horas a fio nessa contemplação sem me cansar de seu encanto. Gosto de olhar nos seus olhos, procurar um brilho no fundo do castanho escuro, e às vezes encontro a doçura que você insiste em esconder. Gosto de afundar meu rosto no seu cabelo e sentir seu perfume, com a certeza completa de que é o que mais me agrada e agradará nesse mundo, e esse cheiro consegue me arrancar da realidade e me fazer flutuar em alívio, conforto, carinho e esperança.

E quando você está longe, me sinto só, mas teimo em sorrir. Quero manter meu semblante alegre para depois também recebê-lo, quando você retornar, com essa mesma alegria. Quando a saudade aperta, coloco fones de ouvido, isolo-me do mundo, ouço uma música que você gosta, fecho os olhos e posso te enxergar.

Escrevo




Escrevo, pois tenho palavras guardadas

Às vezes necessitadas,

De serem mostradas,

De serem ouvidas,

De serem compreendidas.


Escrevo por sentimentos acumulados

Desejos deliberados

Sonhos apaixonados

E olhos fechados.

sábado, 12 de novembro de 2011

Eu desejo




Não quero ser o pilar que te sustenta. Quero apenas ser alguém que colaborou para você construí-lo e, que quando for preciso, trabalha para ajudar a consertar uma infeliz rachadura.

domingo, 30 de outubro de 2011

A rachadura




A rachadura


Clara percebeu que havia uma pequena rachadura na pele lateral de seu pé. Tocando-a coma ponta do indicador, averiguou que o local estava levemente ressecado e a pele áspera ― precisava passar um creme, pensou friccionando a ferida com o dedo.

No entanto, quando voltou para casa, não usou creme nenhum, esquecendo-se do pé. Vários dias se passaram sem mais ela se lembrar do machucado, porém, inconscientemente, levava o dedo ao local de vez em quando, enquanto fitava desinteressada seus professores na sala de aula, ou ouvia silenciosamente seus pais conversarem nas refeições.

Numa certa tarde excepcionalmente chata, envolvida em um tédio tão grande que ela ignorava completamente o que o professor de física dizia, sentiu uma dor ardida vindo do pé. Procurando sua fonte, percebeu quase indiferente que havia arranhado a região ressecada e arrancado parte da pele. O local estava avermelhado, mas não chegava a sangrar. Dando de ombros, puxou sua meia mais para cima a fim de escondê-lo, e voltou à seu árduo trabalho de ignorar o professor.

Sua descontração na sala de aula, entretanto, não afetava seu desempenho. A verdade era que aquele conteúdo era fácil demais, e lendo seus cadernos de teoria conseguia rapidamente solucionar as questões. Era inteligente, sim, e o pai anunciava orgulhoso para todos que quisessem e não quisessem ouvir: seria medica, assim como o avô.

Na noite seguinte foi assistir à apresentação de dança da prima dois anos mais velha. Ela dançava balé contemporâneo, e naquele festival seria uma das dançarinas principais, estrelando pela primeira vez depois de anos de aulas e treinos. Os tios de Clara aplaudiram extasiados quando ela subiu ao palco, mas seus pais estavam discretamente aborrecidos com o evento social. Ela bem sabia, não gostavam da sobrinha, era magra demais, rosto fino demais, pele morena demais, gostos subversivos demais, irresponsável demais. Clara não, tinha o rosto delicado, um sorriso sereno, e puxara os olhos da mãe, o que o pai não cansava de dizer.

A prima entrou no palco com um vestido branco rasgado, o cabelo cheio de cachos puxado num rabo de cavalo alto, caindo por suas costas, e ornamentado com uma fita de cetim. Esquecendo dos comentários dos pais, para Clara, ela parecia a criatura mais fantástica do mundo. Em meio aos aplausos frenéticos e impressionados, ela pôs-se a arrancar lenta e minuciosamente a casquinha da ferida que estava já parcialmente cicatrizada, sem desgrudar os olhos da prima.

Os dançarinos encheram o palco rodopiando, arrastando-se, dançando rentes ao chão com movimentos esquisitos, sensuais, ferozes e libertadores, sob uma música de sons distorcidos da cidade. No final do show todas as bailarinas e bailarinos subiram ao palco agradecer. Montes deles, com roupas deslumbrantes, sorrisos no rosto, se curvavam educadamente diante das palmas. Clara olhava para o palco, depois para os pais, depois novamente para o palco, e não pôde deixar de pensar: “serei uma ótima médica um dia”. Mas não sorria.

Terminada a apresentação, e de volta a sua casa, sem fome, dirigiu-se a seu espaçoso quarto e fechou a porta. O lugar, iluminado apenas por um abajur, exibia móveis de madeira escura. A luz clareava somente o armário com a porta aberta, deixando à mostra roupas cor de rosa, salmão e bege, que a mãe da jovem aos montes comprava e enfiava no móvel, já bem apertado. Na escrivaninha havia diversos livros e uma caixinha de jóias de madeira entalhada e trancada, a chave guardada cuidadosamente longe da vista de todos.

O quarto transmitia uma sensação de vazio para Clara. Ela virou-se na cama, deitando de bruços, sentindo seu pé arder loucamente com o contato em sua meia. Irritou-se com a ferida, mas logo a irritação passou e ela começou a ignorá-la, permanecendo por várias horas fitando seu travesseiro.

Depois daquele dia, não mais deixou que a ferida cicatrizasse. Suas provas se aproximavam, ela mantinha-se entediada com a certeza de que passaria, arranhando o pé. Chegou num dado momento que não havia mais pele para arrancar naquela região, e desinteressada começou a cutucar seu cotovelo. Não levou muito tempo para obter marcas feias, e passou a usar apenas camisetas de manga longa para ocultá-las. Para sua sorte, onde vivia o clima não era tão quente, então não seria incomodada pelo calor e suor.

As provas passaram como se fossem apenas mais um evento rotineiro, sem nada a declarar ou acrescentar, o tédio costumeiro, e enfim chegaram os resultados já esperados que ela obtivera sucesso. A família cheia de orgulho chamou os parentes para uma festa de comemoração em casa, com farta comida, farta fofoca e pouco conteúdo.

A prima chegou com suas roupas despojadas, cabelo solto, alegre, e parabenizou-a com o sorriso mais sincero possível. Clara agradeceu, aquietou-se, voltou ao tédio cheio de angústia e esperou pacientemente que todas aquelas pessoas fossem embora, para enfim jogar-se debaixo da água quente do chuveiro. Deixou-a escorrer por todo o corpo, fervendo, lambendo as feridas que ardiam insuportavelmente, sufocando um lamento. Olhou para seu trabalho bem feito, não havia sequer um lugar mais para enfiar suas garras na região. Apática, examinou o resto de seu corpo, esboçando um sorriso, e pensou:

“Bem, para onde vou agora?”

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Andorinhas




Andorinhas


Andorinhas gostam de voar em dias nublados. Pela manhã, próximas ao rio, formam uma cortina de pingentes negros no céu que me distrai um pouco de minha solidão. Há beleza em um amanhecer de nuvens baixas e carregadas...

O mundo que eu gostaria de entrar...



O mundo que eu gostaria de entrar...



Você cada vez mais afunda

Num fosso escuro entorpecido,

Escutando músicas aflitas,

Escutando guitarras distorcidas.

Em seu mundo, sua companhia,

Em seus delírios, seus sofrimentos,

Sua realidade irreal,

Afunda, mergulha, afunda...



Eu bati em sua porta,

Mas não fui atendida.

Então forcei-a,

Mas encontrei feroz resistência.

O que você esconde ai,

No meio de seu universo,

No meio de melodias tristes?



Há uma ferida em seus lábios.

Há uma ferida em meus olhos.

Mas nossas visões não se cruzam para perceber

Que seus braços estão fazendo falta por aqui.

Quem é o homem que está escondido?

Só vejo uma imagem nebulosa de seu contorno...

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Som da paz




Som da paz


Às vezes penso comigo mesma, se a paz tivesse um som, seria o som da chuva. Não o som daquelas tempestades vorazes que arrebentam terras e rasgam céus, mas sim o daquela garoa contínua que perdura pelo dia todo, lava a poeira e limpa o ar, e na manhã seguinte deixa a grama naquele tom verde vivo. Aquela garoa que cai no entardecer e refresca o ambiente, que deixa aquele cheirinho gostoso de chuva pairando nas ruas. Aquele som que acalma meu espírito...

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Humanidade




Humanidade


Nunca hei de entendê-lo.

Esse seu apego a razão,

Esse seu negar de sentimento!

O que é o que você sente,

Senão você mesmo?

Completamente racional é uma máquina.

Mas você é um homem,

Ouso dizer, cativante.

Por que renegar o que lhe pertence?

Irracional não é o sentir exacerbado,

Mas sim a tentativa de espírito domado,

A tentativa de apagar sua humanidade.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A menina que falava com árvores



A menina que falava com árvores



A menina de olhos azuis aproximou-se de sua mãe, que lia interessada uma revista.

Disse-lhe com voz manhosa:

― Mãe, eu me sinto só.

A mulher não desviou os olhos do que lia, e resmungou:

― Vá brincar com a vizinha.

― Mas ela não é minha amiga. ― A pequena cruzou os braços.

― Não?

― Não. Ela pega meus brinquedos, puxa meu cabelo e zomba de minhas roupas.

― Então brinque com sua boneca nova. ― Disse a mãe encerrando o assunto e fazendo um gesto para a garota sair da sala.

Cabisbaixa, ela foi então falar com seu pai que estava no escritório. Disse-lhe com a voz tristonha:

― Pai, eu me sinto só.

O homem digitava em seu computador ― ele estava sempre trabalhando, era o que a menina constatava.

― Mas você não tem amiguinhos lá na escola? ― Ele tentava deixar a voz doce, mas claramente não estava prestando atenção no que a filha dizia.

― Não. Eles não me deixam brincar...

― Filhinha ― Ele parou de digitar e olhou para ela. ― Deixa o papai trabalhar, depois eu coloco um jogo novo pra você no computador.

Ela desistiu de conversar e foi andando amuada até seu quarto.

No dia seguinte, na escola, procurou sua professora e falou chateada:

― Tia, eu me sinto só.

― Seus amigos estão brincando, vá lá ― Ela fez um gesto para o parquinho, no qual as crianças corriam e pulavam.

― Eles não são meus amigos...

― Claro que são. Vamos, tente se enturmar.

“Gente grande tem uma idéia muito errada sobre amizade”, pensou ela, enquanto se afastava do parquinho e sentava embaixo de uma árvore.

― Eu me sinto só... ― Disse para si mesma e suspirou.

― Eu também. ― Respondeu a árvore.

A menina dos olhos azuis deu um salto, surpresa, e fitou os galhos acima de sua cabeça.

― Você fala?

― Claro que falo, todas as arvores falam. ― Ela respondeu delicadamente, mas como se aquilo fosse obvio. ― Mas os adultos se recusam a nos ouvir.

Ela olhou fascinada para a árvore.

― Qual é seu nome?

― Jacarandá, prazer.

― Por que você se sente só, Jacarandá?

― Não há outras árvores à volta. Não tenho ninguém para conversar, e há muito tempo nenhum passarinho vem aqui fazer um ninho e me alegrar com seu canto.

A garota ficou pensativa, e a árvore completou meio melancólica:

― Nós nos sentimos sós na cidade...

Ela concordou com a cabeça, e perguntou:

― O que é um amigo?

― É alguém que preenche um pouco do vazio das pessoas. ― Disse-lhe a árvore com uma voz meiga, mas tristonha. A menina sorriu.

― Posso lhe fazer companhia?

O vendo bateu nas folhas do Jacarandá, que balançaram, e pareceu que ele estava rindo.

― Mas é claro, pequenina.

A partir daquele dia, a menina de olhos azuis passou a falar com árvores.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

De novo?




De novo?

Amanheceu mais uma manhã.
Entardeceu mais uma tarde.
Anoiteceu mais uma noite.
Amanheceu mais uma manhã.
Outra manhã,
Nada mudou.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Crianças



Crianças


― Já se questionou por que as crianças fazem tantas perguntas e os adultos tão poucas?

― Porque os adultos sabem muito mais que elas, oras.

Eu ri discretamente.

― Não. É porque quando crescemos, paramos de pensar.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Sem sentido




Sem sentido


Rotina bruta, fria, crua.

Rotina que me prende, massacra.

Desrespeito, vontade alheia, indiferença.

Energia tomada, voz desperdiçada.

Luz vã, silenciosa.

Luz que ofusca, racha, tortura.

Faróis, lâmpadas, neon, energia.

Onde estão as estrelas?

Expectativas, correções, exigências.

Por acaso isso é vida?

Pressão intencional,

Rotina superficial

Vazio insistente, ingrato.

Gritos, berros, escândalos,

Meu silêncio lacônico habituado.

Marcham máquinas, não homens,

De lábios fechados, peitos lacrados.

Pobres almas perturbadas,

As que lutam contra a caminhada.

Amor ferido, alma rompida,

Fé dizimada,

Fé que nunca existiu.

Mais um dia, mais uma hora,

Mais um amanhecer, um entardecer.

Quem aprecia o pôr do sol?

Rotina má, constante, nua.

Vazio condizente, obediente.

Tenho palavras, caladas.

Tenho dores, discretas.

Tenho sonhos, tantos sonhos!

Não suporto mais ver a luz.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Alma de poeta




Alma de poeta


Quando a tristeza passar,

Faltarão palavras.

Quando a angústia sumir,

Poesias não hão mais de vir.

Quando o vazio acabar,

Não haverão mais histórias trancadas.



Enquanto escorrer rubro sangue

Da ferida que arde e não cicatriza,

Enquanto encravarem-se espinhos,

Os mais terríveis, vindos de um amado,

Minha alma me martiriza,

Sinto o espírito gelado,

E surge a necessidade de contos,

No papel rabiscados.



Vivo num desejo inconstante.

Num paradoxo incessante.

De encontrar um fim para o sofrimento,

E desaparecer minha maior expressão,

A forma de mostrar que existo,

Matar minha alma de poeta.

Chega!




Chega!


Silêncio! Silêncio!

Chega de gritos desperdiçados.

Chega de ondas sonoras desnecessárias.

Chega de palmas, de berros, de euforia,

Chega dessa tortura auditiva.

Quero o silêncio completo e absoluto.

Quero o silêncio da paz, do campo.

Longe das buzinas, das festas, da TV.

O silêncio do coração em batidas ritmadas.

O silêncio da alma relaxada.

O silêncio dos trabalhadores cansados.

O silêncio de uma criança que dorme.

O silêncio de um chalé da montanha.

Quero o silêncio de um casal apaixonado,

Nu, cru, incontestável, puro.

sábado, 3 de setembro de 2011

O girassol determinado



O girassol determinado


Vi um gracioso girassol.
Ele apontava suas pétalas para o entardecer,
E crescia num chão de concreto,
Sua base espremida numa pequena rachadura.

Admirei o girassol amarelo.
Invejei sua determinação.
Olhe, veja, uma planta determinada!
Muito mais do que muita gente por ai,
Muito mais do que eu mesma.

O girassol cresceu no cimento.
Num pequeno vão,
Rasgou o chão duro,
Tornou-se alto e forte,
Floresceu pomposo.

Queria ser como o girassol,
Que passou por cima das dificuldades,
E tornou-se belo.
Que num entardecer,
Florido,
Inspirou-me.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Tempo e rotina



O tempo é zombeiro e a rotina é sádica. Ele passa veloz, enquanto ela não me permite aproveitá-lo adequadamente. Sinto-me provocada por existências não humanas.

Declaração




Declaração


Do rosto ameaçador, tiro um sorriso brando.

Da voz grave, tiro um suspiro baixo.

Dos olhos castanhos, tiro um brilho raro.

Com os lábios sinceros, digo “eu te amo”.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Estagnada no tempo



Estagnada no tempo


A menina apreciava o vento balançando seu cabelo loiro enquanto o dia terminava de escurecer, e as lâmpadas da rua pacata começavam a acender. Olhava à sua esquerda uma árvore jovem, mas já bem alta, que também era acariciada pela brisa.

Por um momento, focou-se na casa à sua direita, inteiramente construída e habitada. Lembrava-se de ter brincado na construção daquela casa, de ter se escondido nos buracos que futuramente seriam seus alicerces, e espiado um casal que se abraçava bem ao lado daquela árvore. Árvore esta que na época não passava de uma pequena mudinha que a garota plantara nos seus 12 anos. Tratava-se de um ipê rosa, e ela tinha esperanças de que no ano seguinte ele desse sua primeira florada.

Uma coruja piou na mata.

Tudo havia mudado. A árvore bebê agora já era imponente. A construção tornara-se uma casa. Porém, se a jovem pudesse ver seu reflexo naquele instante, e comparasse-o com uma foto antiga, perceberia que seu rosto nada mudara desde os 12 anos. Continuava com a face redonda, os olhos azuis puxados nos cantos, a franjinha na altura das sobrancelhas grossas. Era exatamente a mesma.

E sua alma, havia mudado? Havia crescido? Aparentemente, também não. Era obvio que com o passar dos anos começara a agir diferente, mas conservava a mesma essência de menina, de criança sonhadora. Como se parasse no tempo. Como se fosse fadada a viver eternamente naquela idade, e encantar-se com os encantos daquela idade.

E, no entanto, os outros não ficaram parados. Caminhavam em frente e cresciam, e apenas ela conservava aquele ar infantil. Até mesmo sua companheira árvore tornava-se adulta. Somente ela ainda estava lá, sentada onde brincara com as amigas anos atrás, a mesma de sempre, presa ao passado, beirando a loucura.


O dia em que choveu elefantes cor de rosa



O dia em que choveu elefantes cor de rosa


Era um dia como outro qualquer. Ou pelo menos seria, se não estivesse chovendo elefantes cor de rosa.

Na rua uma menina gritava loucamente: "Está chovendo elefantes cor de rosa!". Os outros olhavam para ela assustados.

"Pobre louca" Pensavam todos. Seria a loucura realmente um sofrimento?
Ela parecia se divertir. Por que não tentar também?

Logo foram todos às ruas com seus gigantescos aparelhos de televisão portátil sutilmente equilibrados para celebrarem esse tão belo dia.

Então começou a chover. Todos entraram deprimidos. "A chuva estraga tudo..." resmungavam eles.

Tinha tudo para ser um dia tão promissor, e mesmo assim, ficaram a ver navios.
Literalmente, já que a chuva se revelou um tremendo e catastrófico dilúvio que dizimou toda a população de loucos daquele esquecido asilo.

Estavam num asilo? Ele não se lembrava. Talvez fosse a idade. Ou não. O que estava fazendo mesmo?

Ah sim, como poderia ter esquecido? Torradas. Adorava torradas. Nada como torradas para alegrar uma manhã sombria e chuvosa como aquela.

Pois então, foi comer torradas. Mas, na cozinha, não encontrou a geléia de morango que tanto amava. Só havia geléia de pêssego.

Desespero. Dor. Sofrimento. Quem havia acabado com a maldita geléia? Munido de banheira e torradeira, foi ao encontro do seu torturador.

Já ate imaginava quem era. Aquela velha enrugada que morava no quarto 103. Aquela bruxa! Sempre comia sua geléia. Ia por um ponto final nisso agora mesmo.

Chegou e bateu a porta da casa dela. Silêncio. Além de tudo aquela desgraçada estava se escondendo? Com um só golpe pôs a porta abaixo, apenas para cair no imenso Vazio.

O que é que estava fazendo? Brigando por um mísero pote de geléia? Olha só até onde se rebaixara... Agora estava tudo escuro.

Por um segundo, ouviu uma risada. Maldita bruxa! Foi só então que se lembrou de abrir seus olhos e erguer-se do chão. E lá estava ela, bem diante de seus olhos.

Ela... Ela estava usando um chapéu de bruxa? E... Com uma ARANHA em cima? Não, não, não, odiava aranhas! Como ia se defender? Estava perdido... Todo seu esforço servira para nada. E ainda não comera sua torrada com geléia.

Ela estava se curvando em sua direção... Já podia até mesmo sentir aquele hálito rançoso invadindo suas narinas, a aranha a milímetros de sua testa. E quando tudo parecia perdido, caiu um elefante cor de rosa exatamente em cima da bruxa. A salvação em forma de paquiderme com cores duvidosas.

"Cor de rosa! Meu salvador é cor de rosa!" gritou o velho exaltado. Saiu para as ruas ainda gritando "Um elefante cor de rosa!". As pessoas olharam para ele assustadas.

"De novo não", pensavam. Morrer duas vezes em um dilúvio no mesmo dia era realmente desgastante.




Créditos ao meu namorado Kaká que me ajudou a escrever esse texto.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

A estrela cadente que não queria cair



A estrela cadente que não queria cair.


Desde sempre foi assim. As estrelas cadentes eram criadas, e caiam na terra, realizando os desejos que as criancinhas faziam a elas.

No entanto, um dia nasceu uma estrela diferente. Fisicamente, era igual às outras, bonita e brilhante, com uma cauda longa. Mas a nova estrela, ao ouvir que tinha que cair na terra, se recusou com todas as forças.

─ Por que tenho que cair? ─ Questionava ela.

─ Por que tem, oras. ─ Respondiam os anjos que cuidavam das estrelas.

─ Mas tem que ter um motivo!

─ Não tem. Estrelas cadentes são feitas para cair. Não questione isso e volte para a fila das que ainda não foram para a terra.

─ Mas eu não quero cair!

Ninguém a ouvia. A jovem estrela foi obrigada a acompanhar as outras que seguiam por uma enorme fila, esperando sua vez para descer à terra. Observou suas companheiras, que aguardavam silenciosas, pacientes, sem nada contestar.

Isso começou a irritá-la. Sentiu-se inquieta. Por que todas elas concordavam com aquilo? Nenhuma tinha medo de cair? Será que só ela era a estranha, que se recusava a fazer aquilo?

Puxou conversa com uma delas.

─ Você não tem medo? ─ Sussurrou curiosa.

─ Medo de quê?

─ De cair!

─ Por que eu teria medo? Eu nasci pra fazer isso.

─ Mas e se você não quiser fazer?

─ Não é questão de querer. Eu fui criada para isso, e ponto final.

─ Mas...

A fila andou e a outra estrela deixou-a lá, ignorada. Não daria a atenção para alguém tão estranha.

No entanto, a jovem estrela não se aquietou. Cada vez mais ficava confusa e aborrecida. Por que todos diziam apenas a mesma coisa? Seria esse seu destino, nascer para cair? Não podia ser outra coisa?

Tentou falar com outras estrelas, mas não conseguiu resultados. Todas davam as mesmas respostas curtas e objetivas, ou simplesmente a ignoravam. A fila continuou a andar. Logo seria a sua vez de pular do céu. Ela começou a desesperar-se.

─ Alguém, por favor, me diga se é esse o sentido da minha vida!

Ninguém dizia, só olhavam torto para ela. Que estela mais barulhenta! Recusava-se a esperar quieta para realizar a sua função.

Agora ela gritava. Começou a andar inquieta, bagunçando a fila, questionando todas as estrelas que via pela frente e, ao não conseguir respostas, afobava-se mais ainda.

Alguém pediu ajuda. Vieram os anjos, tentaram controlá-la. Nada feito, ela se debatia num frenesi doentio, gritando que não queria cair, não queria cair, não queria cair.

Os anjos estavam perplexos. Nunca, em toda a história das estrelas cadentes, uma se recusara a fazer seu trabalho. Será que Deus tinha falhado ao criar esta? Não, ele nunca falhava. Seria obra de um demônio? Não, eles não ganhariam nada com isso. Provavelmente ela era uma dessas raridades inconvenientes que surgem de vez em quanto, para contestar as regras que já existem.

Pediram para as outras estrelas se afastarem. Nesses casos, o jeito é se livrar do mal pela raiz, e de preferência rapidamente; outras podiam se revoltar também, pela influência da primeira. Chegaram à ponta da nuvem, as outras estrelas com os olhos arregalados os observando. Ela ainda se debatia.

No entanto, não pôde resistir. Os anjos eram mais fortes que ela. Jogaram-na
lá do alto, e depois mandaram as outras se organizarem novamente, e fingir que nada havia acontecido. Era apenas um contra tempo.

A estrela diferente começou a cair, e cair, e cair, e não parava mais. E enquanto caía, chorava de pavor, de tristeza e de impotência. Pois tinha sido como todas as outras, seu destino fora o mesmo, e sua vida não fizera sentido.

Tudo voltou ao normal, a fila tornou a andar como sempre. Em pouco tempo, todos se esqueceram da estrela que não queria cair.

Porém, a criança que a viu naquela noite, notou algo estranho. Um brilho singular... Diferente. Sentiu-se sortuda, era uma estrela cadente rara a que vira! Fez um pedido, as mãos juntas em posição de oração, esperançosa.

Nunca mais a jovem estrela foi vista.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Uma flor




Uma flor


Rosa profundo, rosa suave, toque de carmim. Arredondado delicado, minúsculos fios de ouro pendendo. Branco destacado, discreto verde em segundo plano. Acima dos seres pensantes, abaixo do azul. Uma flor.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Último pedido



Último pedido


Sua visão escureceu, as pernas bambearam e o corpo pesou. De repente, o ar tornou-se denso, teimava em chegar à seus pulmões. O peito acelerou, e em seguida diminuiu o ritmo, pouco a pouco, aquietando-se. Ela sabia, a hora chegara.

Uma presença sorrateira adentrou no ambiente. Não era má nem boa, apenas transmitia um pouco de medo, e um pouco de alívio. Já a sentindo ao seu lado, a mulher resmungou:

― Por que demorou tanto?

A resposta veio em forma de pensamento, ou sussurro, ela não saberia diferenciar. Só sabia que não era uma voz humana.

― Ainda não era a hora certa.

A jovem soltou um suspiro. Ela, como ser imperfeito e contingente, realmente não tinha o direito de decidir qual era ou não a hora certa, apesar de muitas vezes o ter desejado.

― E agora, para onde vou?

― A lugar nenhum.

A resposta veio fria. Como era de se esperar, não haveria piedade. Talvez ainda restasse um fio de esperança de que nem tudo acabaria ali, mas este foi se desfazendo gradativamente.

Ah, sentimentos contraditórios sempre a acompanharam em sua vida. Havia o temor de desaparecer, todavia o desejo de descansar gritava agonizado. Estava, de fato, exausta. Mas era humana, e medo faz parte da condição de existência dessa espécie.

Imaginando que mais nada ouviria do carrasco, surpreendeu-se quando o sussurro novamente invadiu seus pensamentos.

― Você é uma alma interessante.

Apesar da exaustão, a mulher riu com gosto, toda sarcástica e desdenhosa. Ela, interessante? E logo quem vinha lhe dizer isso? De qualquer forma, sendo ou não, não faria mais diferença.

― Por que não termina logo? ― reclamou.

― Aos que me interessam, concedo um último desejo ― Para sua surpresa, foi a resposta que obteve. Baixou o tom de voz, curiosa.

― Que tipo de desejo?

― Posso fazer você reviver uma cena do passado, qual você quiser. Ela tem que ser real, algo de sua vida. Depois, termino meu trabalho.

― Hmm...

Seu passado? Suas memórias? Ela lembrava-se claramente de algumas, outras eram borradas por uma névoa fosca chamada tempo.

Memórias duras, frias, pesadas, escuras, dolorosas. Talvez tão escuras quanto seus fios de cabelo, talvez tão horrendas quanto as marcas já cicatrizadas em seu pulso.

E então, vasculhando-as, passou pela maturidade, pela conturbada adolescência ― não tocou a velhice, pois ainda não a atingira, e nem viria a atingir ― e finalmente chegou à infância.

As cores cinzentas das lembranças doloridas se substituíram por tons alegres e vibrantes, tons de vida e paixão, de inocência e felicidade ingênua das crianças.

Uma cena, não mais do que uma simples cena, veio-lhe à memória.

― Já escolhi ― disse ela.

A presença rodeou-a, curiosa.

― Interessante, interessante... Ou deveria dizer, inusitado... ― A jovem ouviu um som que parecia ser um riso, mas talvez não fosse, e ela apenas quis interpretar assim dada sua ambiguidade. ― Abra bem os olhos.

Ficou confusa com a ordem, mas não teve tempo de questioná-la. De repente estava na velha e conhecida sala de estar.

Era uma pequena sala, paredes amarelas e tortas, uma rachadura num canto descia do teto. Uma flor artificial na estante, no amarelo uma moldura vermelha mostrava um documento antigo da imigração espanhola. Havia sofás dos dois lados, uma mesa baixa de mármore branco e desgastado ao centro.

De costas para a janela e de frente à televisão, uma poltrona com um velho recostado a ela. Tinha olhos azuis claríssimos e fumava seu cigarro, enchendo a sala com o odor desagradável de tabaco. Resmungos era sua forma de se comunicar, e sempre reclamava. Era um homem duro e grosseiro.

Nos sofás e no chão estavam quatro crianças. O mais novo dos meninos brincava com um carrinho, o mais velho montava um lego falsificado e o do meio se empenhava em puxar o cabelo preto lustroso da garotinha que tentava futilmente desenhar numa folha em cima na mesa.

A cena era pacífica e humilde. Um avô com seus netos, numa casa velha, com cheiro de cigarro. Uma cena extremamente nostálgica. Simples, mas agradável.

"Ah, belos tempos..." Pensou a jovem. Sua infância, apesar de comum, fora a época mais feliz de sua vida. Sua felicidade estava exatamente nesses pequenos detalhes ― os primos na casa da avó nos finais de semana, brincadeiras de criança, desenhar com giz de cera, ouvir as implicâncias do avô resmungão, que na verdade eles adoravam.

Ela praticamente parou de respirar quando toda aquela cena desmoronou, e a presença estranha tomou conta do seu campo visual novamente.

― O tempo... Acabou. ― Disse a voz sussurrante.

A jovem então tremeu da cabeça aos pés. Sentiu medo, muito, muito medo. Toda a leveza da cena fora arrancada com brutalidade, assim como a leveza da infância fora tirada e destroçada com o amadurecimento.

Mas enfim, tudo aquilo acabaria. O medo, o sofrimento, e também a antiga felicidade. Todos os sentimentos sentidos, jogados no nada. Findados.

A impiedosa beijou-lhe a face.

Então, silêncio.

sábado, 9 de julho de 2011

Brincadeira semântica




Brincadeira semântica


Siga minha lógica:

Chocolate. Pimenta. Cereja. Flores. Cor de rosa. Bochechas. Sorriso. Dentes. Estética. Maquiagem. Coelhos. Sexo. Igreja. Deus. Dúvida. Escola. Rebanhos. Pastor. Guia. Führer.


Portanto, chocolate termina em führer.

Entendeu?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Detalhes



Detalhes

Uma brisa suave.

Um riso de criança.

Uma gota do oceano.

Um cristal translúcido.

Uma pitada de gentileza.

Uma pitada de ousadia.

Uma pincelada de azul.

Um toque de melancolia.

Um sufoco desesperado e angustiado.

Uma parede de espelhos.

Uma questão a ser resolvida.

Essa sou eu.

domingo, 19 de junho de 2011

Anjo caído


Anjo caído

Arrancastes minhas asas, senhor.

Com que direito?

Dizes tu ser o detentor da verdade e bondade,

Todavia, onde está a prova?

Qual é a definição de bondade?

E qual seria a verdade da vida?

Arrancastes minhas asas, porque ousei te contestar.

E acreditas que pagarei eternamente pelos meus pecados,

Perecendo no castigo que me destes.

Ah, doce engano.

Não posso mais voar, mas posso gritar!

Minha voz ecoará pelos céus que antes eram meus,

Mostrando aos pobres mortais que eu descobri

Que tu não és perfeito.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Multidões



Multidões


Caminham as multidões frias e acéfalas, escondendo seus rostos em máscaras.

Caminham as multidões estúpidas alienadas, sem ter conhecimento de si mesmas.

Caminham as multidões, sem dons, opiniões, razões ou sentido.

Caminham as multidões consumistas fúteis, de olhos fechados para todo o exterior.

Caminham as multidões egoístas, ignorantes e aparentemente satisfeitas.

Caminham.

Caminham.

E não param, nunca, para observar o caminho que trilharam, ou o caminho que agora seguem.

Caminham as multidões sem ter motivo de existir.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Se aproximando...




Se aproximando...


Um passo. Dois passos. Pé ante pé, lentamente, ela caminhou pelo ambiente escuro. Com um formigamento arrepiante em sua nuca, a jovem andava receosa com uma das mãos por entre os cabelos, tentando conter em vão a sensação desagradável de que algo ruim se aproximava.

Na verdade, não era a presença ruim que se aproximava. A jovem que caminhava em sua direção. Devagar, mas caminhava, mesmo receosa, mas caminhando. De alguma forma, a presença a atraia, seduzia, mesmo que a garota soubesse que nada de bom viria dela.

No fundo, sentia-se frágil. E aquele outro ser que a habitava era a defesa perfeita, o escudo inquebrável, a proteção necessária. Era atraída, inconscientemente, por aquela força que ela mesma nunca tivera.

Não parava de caminhar. A cada passo, maior o medo. A cada vez que olhava pra trás, maior a dúvida. A cada passo, ouvia um riso sádico rodeando-a, aproximando-se, tornando-se mais intenso. Ela a chamava... Seu outro “eu” a chamava, sussurrando e sugerindo idéias macabras. Assustando-a. Tentando-a.

Mais um passo. Agora estava bem perto... Tremia dos pés a cabeça, e seus pensamentos pareciam se misturar com os da outra, tanto que a jovem já começava a questionar-se de quem realmente era.

Mas seu maior medo, e a grande dúvida que a assolava, só teria resposta quando realmente a alcançasse. Será que a pequena e frágil jovem desapareceria?

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Direito



Direito



Uma vez, um amigo importante me disse algo que nunca esquecerei. “Seu sorriso tem o poder de trazer alegria a todos a sua volta”, ele afirmou. Eu acreditei, e ainda acredito.

Sorrisos... Sorrir o tempo todo foi uma filosofia de vida minha, por muito tempo. Alegre ou triste, ferida ou não, sorria sempre. Nunca foi muito difícil, às vezes o aperto no peito parecia clamar ultrajado, mas eu sempre aguentei. E assim, com essa energia positiva, atrai coisas boas para mim.

Mas... Nem tudo é tão simples. E guardar sentimentos pode ter consequências catastróficas.

Eu comecei a me ver perdida. Porém, outra pessoa importante para mim me deu um sábio conselho – “Você pode ficar triste também. Ninguém consegue ser apenas feliz o tempo todo... Quando precisar, fique triste, chore, não mostre seu sorriso. E quando isso acontecer, eu estarei do seu lado para te ajudar, prometo”.

Sábio conselho, de uma pessoa que infelizmente não tem confiança nenhuma em si mesma. Mas esse alguém me deixou... Apesar da promessa não ter sido cumprida, essas palavras eu deixo bem gravadas.

Eu o escutei, e agora estou dando uma chance para minha tristeza. Estou cansada... Cansada de o tempo todo fingir. O sorriso não mais surge, nem o falso, muito menos o verdadeiro.

O irônico é que eu sorri para ajudar os outros a minha volta, sempre que precisaram.
Perdoei várias vezes, e fui compreensiva, pois em momentos de raiva não temos consciência do que dizemos. Mas agora, quando eu resolvo mostrar minha fraqueza, se eu tinha sequer uma leve esperança de que fariam o mesmo por mim, esta já desapareceu.

Quem quer ficar próximo de alguém com a face tão fechada? Agradável era a minha companhia quando eu sorria. E só... Lembro-me de sábias palavras de outro alguém, “Você não pode esperar que os outros se esforcem como você”. É, já entendi...

Não sorrir é... Frio. Congelante. Assustador. E no entanto, não tenho mais vontade nenhuma de forçá-lo. Todos têm o direito de ficar triste...

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O casal que não queria parar de dançar





O casal que não queria parar de dançar


Moviam-se devagar, no compasso da valsa. A música era lenta e ritmada, e o casal girava nos pés seguindo o fluído som do violino. O salão podia estar cheio, mas nada disso eles viam. Apenas enxergavam o rosto um do outro.

Ah, como esperaram por aquele dia! O dia em que poderiam dançar durante toda a noite, apenas os dois, corpos colados e respirações sincronizadas. A melodia pouco os importava; o objetivo era ficar juntos, sentirem ao outro e declararem-se silenciosamente, apenas com o brilho nos olhos e as carícias discretas.

E podiam ficar lá para sempre, sem ver problema algum. Se a música não acabasse, eles também não parariam. Nem se ela terminasse, não tinham motivos para parar.

Pois seus corações agora batiam simultaneamente. Seus suspiros haviam se tornado um só. Seus perfumes se misturavam, e apenas eles conseguiam apreciar o cheiro adocicado, tal era a proximidade que estavam. E nunca em todas as suas vidas, tiveram um momento tão feliz como aquele.

Não precisavam falar. Seus corpos unidos se comunicavam numa língua que só os dois entendiam. E sem sequer uma manifestação de palavras, ambos compreendiam a mensagem passada. Eles gritavam “Eu te amo”.

A melodia acelerou, e os dois junto. Em meio a giros e piruetas, entravam em um novo mundo. Um mundo somente deles, não havia mais ninguém por lá; era um lugar preenchido por seus sentimentos carinhosos e românticos, ocupado por sua amizade, compreensão e afeição.

E assim perceberam como o ato de amar é simples. Basta estar com a pessoa desejada, tocá-la, respirá-la. No entanto, ao provar disso, você não tolera mais perdê-lo. Não suporta desenlaçar as mãos, afastar os lábios, dar um último sorriso e dizer adeus.

Precisa mais e mais estar com o outro, fundir-se com ele. Tornar-se um só para jamais se separar novamente. O jovem casal provava dessa nova compreensão, sentia essa energia agora percorrendo suas peles, enquanto seus pés mais e mais giravam no piso lustroso do salão.

Nada mais viam. Nada, absolutamente nada. Nem mesmo ouviam a música. Nem mesmo sentiam quando alguma outra dupla desengonçada trombava com eles. Só enxergavam a pessoa amada.

E nem mesmo perceberam quando a canção parou, quando gritos horrorizados preencheram o salão, e pessoas desesperadas correram para fora, fugindo das enormes línguas de fogo geradas por uma pequena vela que tudo agora incendiava.

Não sentiram o calor subir-lhes pelas roupas e cercar-lhes como um predador traiçoeiro. Não viram o incêndio que tomava todo o lugar, incinerava os belos panos que cobriam as mesas, colocava em combustão os antes saborosos aperitivos, e engolia tudo o que estava à sua volta.

Porque o amor nos propicia a sensação mais doce e aveludada existente. Porém, ele também nós cega, vicia, fere mais do que qualquer arma, nos consome como um veneno caprichoso - lenta e dolorosamente.

O casal agora se tornara um só, devorado pelas chamas impiedosas. E suas cinzas, levadas pelo vento, dançarão pelo céu infinito sem nunca parar, exatamente como eles queriam.

Por toda a eternidade.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Alguém




Alguém


Sou alegre, sorridente e pequenininha. Para os que não me conhecem, provavelmente uma boba. Para os que conhecem, uma boba também. Mas tudo não termina nas aparências.

Sou alguém que já viveu muito, e mesmo assim crê que viveu muito pouco. Alguém que já ficou triste. Alguém que já ficou melancólica. Alguém que já se lamentou da vida, e alguém que já ficou feliz por existir.

Já chorei até não mais aguentar; já chorei de dor, chorei de tristeza, chorei por amor, e pela pessoa amada. Já chorei de alegria, já chorei de emoção, de medo, de angústia e de satisfação. Já chorei em silêncio.

Já tive uma crise de risos, e não consegui parar. Já ri quando não deveria. Também ri da desgraça alheia, algumas vezes. Ri de piadas bobas, de ironias, de sátiras, de críticas bem fundamentadas, já ri simplesmente por rir. Ainda faço isso frequentemente.

Já sofri, já mudei, já cresci, já fui criança, já fui egoísta, já pensei no outro antes de mim. Já fiquei brava, constrangida, chateada. Já me exibi, já contei vantagens, já perdi e não me importei com isso.

Nunca consegui guardar rancor.

E me esforcei demais, e me decepcionei. Fingi estar bem, quando não estava. Tentei ajudar alguém importante também, esquecendo completamente de meus problemas.

Conheci as felicidades da vida, conheci os horrores também. Descobri que a felicidade está escondida em pequenos detalhes, pequenas ações, num simples “eu te amo”. Deixo essa dica para quem tentar procurá-la.

Descobri que decepções são necessárias, e portanto é impossível evitá-las. Descobri também que tive forças para superá-las. Descobri que sozinha não vou conseguir nada.

Descobri os prazeres da vida nas palavras, nas artes, na música e no amor. E desses prazeres tiro minha inspiração. Descobri que a melancolia também nos inspira, tanto quanto a alegria, ou talvez até mais.

Aprendi recentemente que quanto mais complicados pareçam nossos sentimentos, mais simples eles são.

Quem sou eu? Não sei, ainda estou me descobrindo. E sabe, gosto do que descubro. Algumas coisas não, mas a maioria sim. Sou alguém no mundo, simplesmente alguém.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vista de Titã




Vista de Titã


Silêncio. Eterno, infinito e completo.

A visão de saturno, daquele rochedo em uma de suas luas, no qual eu estava sentado, era um prazer suave.

O planeta flutuava enorme lá no céu, belíssima bola de gás nunca explorada por homens. E os anéis o circundavam, como uma gigante aliança de compromisso, sinal de proteção, amor e fidelidade.

O Poderoso Sol estava distante, mostrando apenas um pouquinho da extensão que realmente é. Além dele, viam-se estrelas e mais estrelas no manto negro que cercava os planetas - o tão conhecido universo.

Saturno brilhava orgulhoso, aproveitando a luz que recebia do astro incandescente. Simplesmente lindo.

Enquanto observava a paisagem, ajeitei o cachecol azul em meu pescoço. E ao voltar os olhos para o planeta, tive a sensação de ver algo se movendo. Vultos coloridos, seriam pássaros?

Belíssimos pássaros! Ah, mas não há pássaros em Saturno... O que seriam aquelas criaturas? Observando melhor, percebi. Eram apenas os gases do planeta, que se movimentavam graciosamente. No entanto, realmente pareciam aves... Decidi batizá-los de pássaros de Saturno.

Mas além dos elegantes pássaros, nenhuma outra criatura me rodeava. A vista era magnífica, de fato, porém também solitária...

Lembrei-me de um amado livro, do pequenino protagonista ingênuo. E sem um motivo exato, repeti suas palavras.

“Tem alguém ai?”

Obviamente, assim como no livro, não esperava obter uma resposta. Levantei-me num sobressalto quando uma voz doce veio de trás de mim.

“Tem sim”

Virando-me exaltado, encontrei com meus olhos duas figuras. Duas figuras há tanto ansiadas por serem vistas pessoalmente pelos meus olhos claros.

A menina, baixa e de semblante pacifico, tinha em seu pescoço um cachecol verde suave. E o garoto, bem mais alto que ela, expressão de completa alegria, trazia um cachecol vermelho intenso.

Ambos sorriam. Ambos olhavam para mim. A garota se aproximou primeiro, segurou minha mão. O outro veio logo atrás, passou o braço pelos meus ombros. Ela disse com a voz meiga.

“Estamos aqui.”

E o menino confirmou com a cabeça e em seguida disse:

“Você não está sozinho.”

Meus dois grandes amigos.

Deixei um sorriso explodir em meu rosto, e uma única lágrima escapar pelos olhos.

Nos encontramos em Titã, uma lua de Saturno.

domingo, 8 de maio de 2011

Invejável



Invejável


Um vulto se aproximou do pico nebuloso. A criatura abriu as asas orgulhosa, chacoalhou o corpo para afastar a neve. Tudo reinava no mais completo silêncio, desde a montanha gelada até a paisagem kilômetros e kilômetros abaixo dela.

Então um grito cortou o ar, rasgou a corrente gelada, e quebrou o calar do horizonte. O animal mirou todo o território, impossível saber o que ele pensava. Ou se sequer pensava. Podia ser apenas um instinto, uma tendência de sua espécie. Mas naquela hora, em meio do branco emoldurado no azul, parecia o ser mais inteligente e magnífico existente.

Logo todos os músculos trabalharam, as articulações se dobraram, e as pernas fortes deram o impulso. Lançou-se ao ar, gabando-se de todo o resto. O céu era seu, somente seu, e a paisagem logo abaixo também. Moveu as asas para impelir-se mais para o alto, e depois planou aproveitando uma corrente de ar.

Asas abertas, penas balançando com o vento, triunfante. A águia estava onde deveria estar, em seu lugar. Não eram necessárias reflexões, pressões mundanas, ou regras sem sentido. O animal voava por simplesmente voar, por essa ser sua natureza, e por assim sentir-se bem. Criatura livre, espontânea e radiante.

Os homens que a invejassem! Chegara mais alto do que qualquer outro. Era um Deus! Acima, apenas o azul do céu, sem nuvens. Abaixo, uma floresta de pinheiros decorada com a brancura da neve. E a frente... Bem, o que ela quisesse. Sem rumo, sem obrigações, poderia viajar para onde bem entendesse.

Cada movimento a movia com mais velocidade, as penas pontiagudas do final das asas jaziam abertas, tornando-a ainda mais sublime e ufana de sua capacidade de voar. Não sabia o que a aguardava, muito menos seu rumo ou destino. Apenas voava. Para frente, sempre, crédula de sua força. Deslumbrante. Poderosa. Invejável.

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Sabe o que é amar?




Sabe o que é amar?

Sabe o que é amar?
É perceber cada detalhe
Observar cada movimento
Deliciar-se com cada palavra
Que é proferida pelo seu sorriso

E amar incondicionalmente?
É pensar, em cada instante
E sonhar em cada noite
Com seu toque, seu calor
E seus suspiros de deleito

Se amar é sofrer
Aceito esse castigo por toda minha vida
Porque amar é só o que sei
E se nem isso eu não puder fazer
Muito maior será o sofrimento.

quinta-feira, 5 de maio de 2011

Amante do caos




Amante do caos


Gosto de provocar as pessoas. Se todos vão para um lado, eu vou para o outro – dar o contra já se tornou minha especialidade. Adoro o que é desafiador, o esquisito, fora dos padrões.

Gosto de fazer comentários polêmicos, politicamente incorretos, que incomodam as massas. Provoco, cutuco, às vezes nem estou expressando minha opinião verdadeira, só quero encher o saco mesmo. Delicio-me com a expressão que alguém faz quando seus ideais são criticados.

Faço perguntas absurdas, nem nexo e de vez em quando idiotas. Faço-me de burra, para irritar, e também faço-me de intelectual, pelo mesmo fim. Se encontro uma figura arrogante então, dedico-me completamente a estragar seus argumentos e deixá-la aborrecida.

Por causa de certos acontecimentos e influências, desenvolvi um sadismo inquieto. Ele não faz parte da minha essência, mas se manifesta frequentemente. É claro que quando necessário, paro com as brincadeiras e mostro minha real opinião (e também a defendo até o fim). Mas se tiver liberdade para atormentar todos a minha volta, não perco a chance.

Sou um monstro? Não, nem tanto. Uma pentelha, talvez, usando um eufemismo. Podem me chamar de amante do caos.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Fita azul



Fita azul



Certo dia, com a sensação de ter despertado de um sonho no qual passara toda a minha vida, simplesmente desisti de me concentrar em qualquer tarefa útil ou necessária. Comecei a brincar com uma fita do senhor do bom fim, que estava amarrada em meu estojo.

Absorta em pensamentos, enrolava a fitinha azul no dedo, desenrolava, fazia um nó, desfazia, até que puxei um fio solto. E ao puxá-lo, outro se soltou, e ao também puxar este, o mesmo ocorreu com o que vinha em seguida.

Encontrando algo interessante em meu momento de reflexão, coloquei-me a desfiar a fita. Fio por fio, devagar, desajeitada. Descobri que na verdade ela é feita por feixes de linha que se cruzam, o que pode parecer algo banal para se perceber. No entanto, a fita azul escura me fez pensar.

O que existe por trás do que existe? Ah, devo parecer doida ao fazer tal pergunta. Mas na verdade, não é tão absurdo assim. A fita, que existe, é feita por fios, que também existem. E, no entanto, quando se vê uma fita, não se pensa do que ela é feita; apenas constata-se que ela é o que é, e ponto final. Por quê?

Deve ser consequência de minha curiosidade excessiva, ou da já antes comentada sensação de ter despertado de um sonho, que me faz querer ver mais fundo. Bem mais fundo.

Posso ir mais longe ainda: tocando a fita, pude perceber que esta possuía uma textura relativamente áspera; mas tocando a parte agora desfiada, senti macieza, uma textura mais agradável. Como explicar que exatamente o mesmo material pode passar sensações diferentes, dependendo da forma como está sendo utilizado ou disposto?

Perguntas desse tipo enchem minha cabeça diariamente. E de fato parecem bobas, mas posso transportar a reflexão da fita para minha realidade. Repito, o que existe por trás do que existe? O que está escondido atrás dos olhos? Acredito que muitas vezes minha visão me engana. Meu coração me engana. Eu mesma me engano. Mas não de propósito.

Gostaria de ver os fios escondidos, gostaria de despertar de sonhos mais vezes, e de me chocar com a realidade, e me distrair do que é considerado “útil”, e parar para refletir sobre algo que parece banal novamente. Confesso que cada vez que isto acontece, a realidade me assusta. E ao mesmo tempo, me pergunto se essa é realmente a realidade, ou mais um sonho dentro do sonho, do qual despertarei um dia.

Posso ainda chegar a mais uma conclusão com essa reflexão de aparente teor altista – porque como sempre, fazer e pensar algo fora do comum é considerado problema de sanidade – que é: a cada fita que desfio, torno-me mais habilidosa em tal ato.

Ao desfiar a primeira ponta, tive certa dificuldade, puxei fios errados, e o resultado foi meio torto e amarrotado. Mas após entender o mecanismo, fui para a outra ponta, e desta vez com mais habilidade consegui um resultado mais belo, em menos tempo. Interessante a prática que conseguimos em tudo que fazemos. Tentamos uma vez. Na segunda vez que tentamos, já não somos mais os mesmo da primeira. Já evoluímos, mesmo que seja pouquíssimo, mesmo que seja uma evolução que não tenha propósito. Cada vez que respiramos, aprendemos algo novo, crescemos.

Claro, essas são apenas teorias de uma mente romântica, sonhadora e curiosa. Para mim fazem sentido, para os outros não tenho idéia. Talvez façam, talvez não. Gostaria que fizessem. Enquanto os outros fazem suas próprias reflexões, farei as minhas. Sairei em busca de mais fitas para desfazer.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Saudades...




Saudades...



Preciso voltar a escrever. Preciso voltar a brincar com as palavras, dançar uma valsa cheia de rodopios junto a elas.

Meu desabafo, meu consolo, minha expressão, parecem ter se perdido com o tempo. Não gozo mais daquela satisfação de um texto bem escrito, de um sentimento exposto em poesia, ou uma simples gargalhada tirada de outro com minhas palavras no papel.

A falta que isso me faz é imensurável. E enquanto meu caderno permanece em branco, o aperto no peito aumenta. A necessidade de escrever cresce. E a inspiração continua sumida...

Essa rotina, essa sociedade, essa pressão nos tira a alma de poeta. Esqueço aos poucos os prazeres da vida, os prazeres de uma humilde escritora. Estou cansada, febril, doente de viver por um objetivo que não me faz sentido. E desolada com o modo como tudo a minha volta funciona.

Preciso voltar a brincar com as palavras. Pelo simples prazer de uma crônica boba, ou pelo alivio de uma reflexão há muito tempo guardada no peito. Pela alegria de agradar aos outros, de entretê-los, de passar mensagens ou dar conselhos. Pela satisfação de mostrar o que eu penso, sinto e acredito – meus ideais. Pela diversão de imaginar historias absurdas, mágicas e principalmente, que nos fazem sonhar.

Ah, que saudades das minhas amigas palavras...